Dia 18: Um livro que ninguém esperaria que eu gostasse
Nem eu mesma esperava gostar. Mas até gostei.
Já tinha birra de longa data com o José Saramago quando vim a ler "Que farei com este livro?" e para minha surpresa fiquei bem surpreendida. Acontece que aqui Saramago não escreve como Saramago e como eu não gosto de como ele escreve, gostei de como ele não escreveu desta vez, entenderam?
Esta é uma das poucas (até onde eu sei) pecas teatrais de Saramago, fugindo portanto da sua forma comum de prosear.
A peça conta as dificuldades editoriais que Luís Vaz de Camões encontrou quando, tendo regressado da Índia, quis imprimir sua obra-prima, "Os Lusíadas" em Portugal. Taxas, impostos, licenças, vistos e permissões, do Santo Ofício, do Regedor Geral e de mais mil e um prebostes burocráticos. A isso se junta a pobreza pessoal e familiar, a falta de confiança que mesmo os grandes artista experimentam, o desânimo com a precária situação política que o país atravessava.
Não sei até que ponto o cenário é realista, mas descreve algo sobre o qual eu quase nunca penso: as dificuldades práticas, miúdas e gigantescas, para se realizar grandes obras de arte.
"António Gonçalves: Se vosso livro vender...
Luís de Camões: Não fareis mau negócio.
António Gonçalves: Mas, e se não vender?
Luís de Camões: Fá-lo-eis péssimo.
António Gonçalves: Agradeço-vos a franqueza.
Luís de Camões: É o que tenho para dar.
António Gonçalves: E quanto é que quereis pelo privilégio?
Luís de Camões: Cinquenta mil réis.
António Gonçalves: Pedis demasiado, senhor Luís de Camões. Vede que juntando-lhe os quarenta mil réis que custa imprimir o livro, teria eu um gasto somado de noventa mil réis.
Luís de Camões: Assim é.
António Gonçalves: Que talvez não me reembolse por inteiro.
Luís de Camões: É como dizeis.
António Gonçalves: Não sei se me interessa o negócio.
Luís de Camões: Nunca o sabereis se não o fizerdes. Mestre António Gonçalves, não há porta nenhuma a que eu possa bater. Esta é a única. Poderia dar-vos mesmo o meu livro, apenas com a condição de que o imprimísseis. Mas preciso de comer, precisamos, minha mãe e eu. Dai-me cinquenta mil réis e eu entrego-vos o meu privilégio, fazei do livro o que quizerdes, vendei o quanto puderdes. Haverá decerto quem o leia, e se ele vale quanto de mim pus nele, talvez o futuro vos conheça por terdes composto, letra por letra, página por página, os Lusíadas de Luís de Camões. (Pausa.) Perdoai a vaidade do autor."
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