Inveja e Mudança
Meus parabéns e meus esgares de inveja aos que não têm dúvidas, aos que são cheios de certezas, aos que não hesitam, não oscilam, não vacilam. Aos afortunados que têm os seus caminhos traçados e delimitados, retos, diretos, seguros, definitivos. Aos que não se perdem no meio das infinitas possibilidades. Aos que não se dissolvem entre múltiplas opções. Aos que decidem, opinam, assinam, assumem, mantêm e afirmam sem se corroerem de angústia ante a probabilidade do erro. Aos que querem só uma coisa. Aos que não mudam de idéia. Aos que desprezam as nuances do cinza e se posicionam claramente no preto ou no branco. Aos que conseguem ser maniqueístas. Aos que acham que têm a clareza do certo e do errado. Aos que acham que sabem tudo. Aos que não sofrem dilemas éticos, morais, profissionais, pessoais. Aos que consideram ter alcançado a justa medida e julgam não terem motivos de remorso. Aos que são docilmente guiados pela rigidez das fés, dos dogmas, das regras, dos hábitos ou de suas próprias neuroses.
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Nos últimos 15 anos, mudei de casa 7 vezes. Não esquentei lugar. Não finquei raízes.
Meu lar é onde estão meus sapatos. E minhas bolsas. E meus batons. E meus livros e quadros e as pastas com a minha coleção de papéis de carta e a caixa de cartas antigas da minha avó e as agendas de todos os anos desde o início da adolescência e os mil brincos, pulseiras, colares, cintos e broches fora de moda; espelhinhos de mão e de bolsa; porta-retratos, porta-papéis, porta-lápis, porta-trecos; certidões de vacinação com a validade expirada; passaportes idem; fotocópias de tudo e mais alguma coisa; documentos importantes e outros nem tanto; rascunhos de poemas, de desenhos, de trabalhos, de projetos; lembrancinhas de aniversários, batizados, nascimentos; bilhetes amassados de amores e ódios esquecidos; mementos de amizades perdidas no tempo e espaço; trens de cozinha que quase não se usam, os que se usam sempre, amassador de batata, descascador de alho, ralador de cenoura; copos-medida com marcação de 50 em 50 mL, copos do dia-a-dia, copos de uísque e taças de champanhe ainda virgens de bocas ávidas de líquidos e prazeres; tijelas de ração dos animaizinhos que se foram levando de nós boa parcela de alegria; o bebedouro da beija-flor que fez ninho na nossa janela e foi derrubado numa noite de forte chuva e ventania; luminárias que aliviam a escuridão em que mergulhamos nossas vidas; os enfeites da árvore de natal que nunca consegui cultivar e tem que ser reposta todo o ano tal como tem que ser reposta minha esperança; o que restou do presépio precioso que foi da bisavó quando criança; fotos, fotos, fotos, fotos em álbuns, fotos largadas avulsas, menos as fotos de quem já me fez tanto mal que foram pro lixo na primeira oportunidade; as carrancas do São Francisco; as imagens dos santos; as miniaturas dos barcos em que nunca naveguei; as roupas que não servem mais e se voltarem a servir eu não vou querer usá-las; os cachecóis que eu vivo torcendo para que faça frio para usá-los mas que quando faz frio eu não lembro que tenho; luvas de lã e de couro; bonés dados de brinde por marcas comerciais que não consumo; caderninhos de anotações que não mais entendo; pastas de congressos; malas, mochilas, sacolas; manuais e apostilas que salvariam o mundo se todos os lessem, notas fiscais e garantias do que já me desfiz; chaveiros enferrujados com chaves de sabe-se-lá-que-portas mas que nunca mais serão abertas por mim; presentinhos horrorosos dados por gente tão querida; jarras de flores que murcharam muito rápido; roupinhas de bebê; prateleiras desmontáveis; bonequinhos de durepóxi com dizeres tão ridículos como "você é especial para mim"; pétalas soltas de rosas que um dia tiveram significado; echárpes; estantes; peças de enxoval de um casamento equivocado; sofás tão ruins quanto baratos; porcelanas tão caras quanto antigas e muito, muito antigas; sombrinha velha que funciona bem; sombrinha nova que já soltou o tecido dos raios; graxa de sapato preta e marrom; pedrinhas coloridas compradas por um trocado qualquer numa loja de quinquilharias; pedrinhas coloridas achadas no chão; o cofre pequeno com as poucas jóias de verdade; uns quatro carregadores de celular; muitos metros de fios, extensões e cabos elétricos; os eletrodomésticos supérfluos que ronronam simulando grandes gatos; CDs que fazem boa companhia; ferramentas básicas; furadeira elétrica; varal de chão; saboneteiras; necessáires desnecessárias; cabideiros; computador de última geração há três gerações atrás; inutilidades escolhidas a dedo e mais uma infinidade exaustiva de coisas.
E tudo isso, toda a minha, por assim dizer, vida cabe em caixas de papelão. Contemplando a profusão de caixas que desordenam o espaço entre paredes a que chamo casa, me vem o pensamento, não sei ainda se triste ou feliz, de que não preciso de nada daquilo para viver.
Um dia, eu também caberei numa caixa.
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Nos últimos 15 anos, mudei de casa 7 vezes. Não esquentei lugar. Não finquei raízes.
Meu lar é onde estão meus sapatos. E minhas bolsas. E meus batons. E meus livros e quadros e as pastas com a minha coleção de papéis de carta e a caixa de cartas antigas da minha avó e as agendas de todos os anos desde o início da adolescência e os mil brincos, pulseiras, colares, cintos e broches fora de moda; espelhinhos de mão e de bolsa; porta-retratos, porta-papéis, porta-lápis, porta-trecos; certidões de vacinação com a validade expirada; passaportes idem; fotocópias de tudo e mais alguma coisa; documentos importantes e outros nem tanto; rascunhos de poemas, de desenhos, de trabalhos, de projetos; lembrancinhas de aniversários, batizados, nascimentos; bilhetes amassados de amores e ódios esquecidos; mementos de amizades perdidas no tempo e espaço; trens de cozinha que quase não se usam, os que se usam sempre, amassador de batata, descascador de alho, ralador de cenoura; copos-medida com marcação de 50 em 50 mL, copos do dia-a-dia, copos de uísque e taças de champanhe ainda virgens de bocas ávidas de líquidos e prazeres; tijelas de ração dos animaizinhos que se foram levando de nós boa parcela de alegria; o bebedouro da beija-flor que fez ninho na nossa janela e foi derrubado numa noite de forte chuva e ventania; luminárias que aliviam a escuridão em que mergulhamos nossas vidas; os enfeites da árvore de natal que nunca consegui cultivar e tem que ser reposta todo o ano tal como tem que ser reposta minha esperança; o que restou do presépio precioso que foi da bisavó quando criança; fotos, fotos, fotos, fotos em álbuns, fotos largadas avulsas, menos as fotos de quem já me fez tanto mal que foram pro lixo na primeira oportunidade; as carrancas do São Francisco; as imagens dos santos; as miniaturas dos barcos em que nunca naveguei; as roupas que não servem mais e se voltarem a servir eu não vou querer usá-las; os cachecóis que eu vivo torcendo para que faça frio para usá-los mas que quando faz frio eu não lembro que tenho; luvas de lã e de couro; bonés dados de brinde por marcas comerciais que não consumo; caderninhos de anotações que não mais entendo; pastas de congressos; malas, mochilas, sacolas; manuais e apostilas que salvariam o mundo se todos os lessem, notas fiscais e garantias do que já me desfiz; chaveiros enferrujados com chaves de sabe-se-lá-que-portas mas que nunca mais serão abertas por mim; presentinhos horrorosos dados por gente tão querida; jarras de flores que murcharam muito rápido; roupinhas de bebê; prateleiras desmontáveis; bonequinhos de durepóxi com dizeres tão ridículos como "você é especial para mim"; pétalas soltas de rosas que um dia tiveram significado; echárpes; estantes; peças de enxoval de um casamento equivocado; sofás tão ruins quanto baratos; porcelanas tão caras quanto antigas e muito, muito antigas; sombrinha velha que funciona bem; sombrinha nova que já soltou o tecido dos raios; graxa de sapato preta e marrom; pedrinhas coloridas compradas por um trocado qualquer numa loja de quinquilharias; pedrinhas coloridas achadas no chão; o cofre pequeno com as poucas jóias de verdade; uns quatro carregadores de celular; muitos metros de fios, extensões e cabos elétricos; os eletrodomésticos supérfluos que ronronam simulando grandes gatos; CDs que fazem boa companhia; ferramentas básicas; furadeira elétrica; varal de chão; saboneteiras; necessáires desnecessárias; cabideiros; computador de última geração há três gerações atrás; inutilidades escolhidas a dedo e mais uma infinidade exaustiva de coisas.
E tudo isso, toda a minha, por assim dizer, vida cabe em caixas de papelão. Contemplando a profusão de caixas que desordenam o espaço entre paredes a que chamo casa, me vem o pensamento, não sei ainda se triste ou feliz, de que não preciso de nada daquilo para viver.
Um dia, eu também caberei numa caixa.
3 Comments:
Lindo.
Já fui muito apegada a coisas.Hoje não mais.
E o Fabien,que não deixou trocar a cama velha porque é onde fizemos nossos filhos, não me deixou doar a bergère porque foi ali que amamemntei nossas crias e, sem problema algum, trocou a mãe dos filhos dele.
Esquisito né ?
Quase sempre me surpreendo quando veio aqui. Adorei o post!
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