Caso existissem vidas passadas (coisa em que não acredito), eu nunca devo ter sido ninguém importante: nem rainha, nem amante de poderosos, nem sacerdotisa. Sempre o anonimato, sempre o destino das mulheres comuns e normais. Mais ou menos assim:
No final da última glaciação, eu acompanhava meu bando nômade perseguindo as manadas de mamutes. Tive dois filhos, nem sei de que pais, pois na época éramos todos muito promíscuos. Ao descarnar com pressa um alce gigante (as hienas se aproximavam), feri a mão com a ponta de sílex e a ferida infeccionou. Após cinco dias de febre, morri. Tinha 17 anos.
No reinado de Ramsés I, eu plantava cereais a cada vez que as águas do Nilo baixavam. Meu marido me comprou, aos treze anos, por três cabritos e uma novilha, tive cinco filhos, continuei plantando cereais às margens do Nilo e, para os padrões da época, tive uma vida longa e tranquila. Morri de malária aos 25 anos.
Durante a decadência do império romano, eu era escrava de um senador. Fui batizada cristã por ordem dele, mas não me fez a menor diferença na vida. Lavava as togas e os mantos e detestava as noites de orgia, porque a roupa vinha sempre vomitada. Um belo dia, após meses de cerco e de fome, os bárbaros nos invadiram. Fui degolada aos 30 anos.
Idade Média. Impossível lembrar direito, mas havia muita fome e muito frio. A peste me levou aos nove anos, junto com toda a minha família.
Chegou à nossa tribo a notícia de homens brancos que vinham em grandes barcos pelo mar, com armas e ferramentas muito poderosas. O cacique montou uma expedição de guerreiros e homens sábios para tentar uma aliança contra os tamoios. Fui com eles. Mas os inimigos nos atacaram no terceiro dia de caminhada e fomos mortos e devorados. Nem cheguei a ver as caravelas. Não sei que idade tinha.
Era 1760 (Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo), quando o senhor meu pai decidiu que eu deveria ir para um convento, pois não havia dote para me casarem. Minhas quatro irmãs mais velhas já haviam casado e meus três irmãos haviam dilapidado todo o patrimônio da fazenda comprando uma maldita máquina a vapor que ninguém sabia como usar. Bordei, pacientemente, paramentos para o bispo durante 45 anos. Morri aos 60, de morte natural e tédio. E o pior de tudo: virgem.
Fins do século XIX. Vivia espartilhada, apertada e incomodada; aprendi a ler, mas só o que a igreja e o estado permitiam. Tudo era proibido. Só saía de casa para visitar parentes ou ir à missa. Passava a maior parte do tempo na cozinha. Apanhava do marido, mas nunca contei para ninguém. Dinheiro sempre escasso. Vi meus filhos mais velhos morrerem de sarampo, meus irmãos de tuberculose, muita gente de gripe espanhola. Eu morri aos 32 em conseqüência de um parto difícil.
Mulher do século 21. Estudei, casei, descasei, tive filhos. Sou independente, trabalho duro para me sustentar. Nunca tive tanta liberdade: vou onde quero, faço o que quero, não dou satisfações. Minha expectativa de vida nunca foi tão alta. Ainda tenho medo da violência e de algumas doenças. A existência é muito mais confortável, embora infinitamente mais complexa. Pela primeira vez na história posso esperar ser feliz, um conceito que até então não era pertinente.